domingo, 29 de abril de 2012

Sobre flores e chocolate

Qualquer mulher daquele mundo adorava receber flores e chocolate de presente. Nem precisava ser tão romântica assim, já que convencionara-se que tal feito era sinal de carinho e importância. Ela, no entanto, apesar do coração leve, nunca gostara muito daquela ideia. De fato, nada tinha contra o chocolate, seu pecado cotidiano insaciável, mas as flores, essas lhe surtiam como um verdadeiro problema: exceto as flores de plástico, que nunca morrem, todas as outras tinham seus dias contados. E fora justamente num dia enluarado de abril que ganhara de aniversário um chocolate e uma "kalanchoe". A princípio, aquele presente lhe soara mais incrível do que nunca, mas ao chegar em casa deparou-se com a conhecida ilusão: "Essas flores, até quando?" Comera o chocolate em dois tempos e, de soslaio, todos os dias ia visitar a flor e a ilusão. Só que os dias foram passando, as estações mudando, e lá estava a flor, linda, sempre enfeitando seu dia. E de todas as flores, ela era a mais bela, delicada, às vezes lhe sorria. Passara, assim, a cuidar dela com mais apreço, e entendera, então, o significado de cada flor, por mais efêmera que fosse, e a intranquilidade do pequeno príncipe: para cada flor, uma razão. E particularmente em relação à "kalanchoe", de todas as flores do mundo, não existia outra que lhe trazia igual recordação. E desse dia em diante passou a admirar cada flor que encontrava pelo caminho, na tentativa, quase vã, de desvendar qual teria sido seu motivo e se teria, enfim, chegado ao seu destino...

sábado, 28 de abril de 2012

Ticket to fly

Ganhara uma passagem de avião. Ida e volta. Isso já havia um quê de extraordinário, mas a descoberta mais notável daquele presente veio durante a viagem: não havia ganhado apenas uma passagem para voar, mas sim, uma passagem para realizar um sonho, junto. E tão incrível quanto tornar real um sonho próprio, talvez seja  fazer parte da realização do sonho de alguém. Ainda mais se esse alguém se faz instantâneo e cotidiano em seu coração como nenhum outro alguém jamais pode fazer, que cada um é único. Do brilho nos olhos daquela noite a céu aberto e de todas as canções que nos soaram épicas e inéditas, back from the "Magical Mistery Tour", fica pra sempre a lembrança de ter sonhado "junto" ver, ao vivo, um dos eternos fab 4. 

Because "the love you take is equal to the love you make." *


E como um "plus" veio o contentamento de ter vivido isso tudo com essa fantástica "Band on the Run"!!!!


*Paul MacCartney - Recife, 21 de abril de 2012

domingo, 15 de abril de 2012

Sobre o silêncio

"Era uma noite clara, de lua. Os dois foram conversando até o Parque. Havia muito sobre o que conversar, como falavam! Devassavam as razões da existência, descobriam a natureza íntima das coisas, tentavam penetrar no mistério do ser.
    - Estamos imprensados entre estes dois acontecimentos: o nascimento e a morte. Temos apenas 60 anos para resolver o problema, talvez menos. 
    - Não há problemas: só há soluções.
    - Só há uma solução: morrer.
    - As nossas contradições. Vivemos segundo nossas emoções do momento, procurando localizar, descobrir uma constante e dizer: isso sou eu. 
    - Ninguém entende nada de nada.
Passaram pela ponte rústica, de madeira já podre, ganharam a ilha deserta, no meio do lago já seco. Havia uma touceira de arbustos, um banco de pedra, uma estátua de mármore pálida de lua. Sentaram-se no banco e se calaram, tentando entender o silêncio. As palavras tinham um sentido além delas mesmas. O silêncio seria, sempre, o único meio de entendimento perfeito. 
    - Eduardo.
    - O quê?
    - Estou com medo.
    - Eu também." - O Encontro Marcado, Fernando Sabino, páginas 92 e 93. 

domingo, 8 de abril de 2012

Sobre o "seu mundo"

Da sala de estar já se sentia seu cheiro, embora fosse, talvez, da cigarrilha. Depois de um corredor escuro e sombrio, lá se encontrava "seu mundo". Um emaranhado de letras e melodias, filmes e nostalgia em forma de retrato. Pinduricalhos, como alguém diria, um instrumento musical (não, dois!) e, claro, tecnologia (em uso e estragada!). Uma raquete de tênis empoeirada, uma caixa enfeitada (coisas de ex-namorada!), um cinzeiro. Livros, milhares, roubados, ganhados e comprados. O marcador no Kundera. Skol. Cama sem fazer. Uma cadeira vermelha, desenhos. Cds de invejar qualquer colecionador. Um ventilador aposentado, que só fez falta por algumas horas, poucas das quais estive ali. O entardecer na Carlos Gomes veio logo com a vontade da lua aparecer (a que não te encanta!). Surpresas embrulhadas: a caixinha azul ao acaso (ao acaso?!), dentro dela o poema. E o Encontro Marcado, cujas primeiras páginas leu pra mim, quase em devaneio, tamanha satisfação! Da falta de som de verdade veio a ideia da pizza no supermercado. Rocky Balboa no talo! Da janela viu-se cultura: procissão da Semana Santa. Também não faltou política. Foi quando eu te pedi pra apagar a luz. Ao som das músicas proibidas conversamos mais um pouco sobre nada. Sonho de adolescente realizado. Você de olhos fechados, eu a te observar. Não fora a madrugada adentrando serena, teria ficado ali por muito mais tempo... tempo todavia  insuficiente pra tudo que se deseja viver nesse "mundo de meia-tigela inteira"... 


"Se tu vens às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz." - Saint-Exupéry

terça-feira, 3 de abril de 2012

A menina da Montanha Mágica

Há trinta e três anos atrás uma menina de cabelos longos e lisos veio ao mundo pra ver o sol se pôr a cada entardecer. Veio colorir desenhos e rabiscar sentimentos, fazer sorrir a gente e fazer chorar também, que não tem jeito. Veio conhecer o amor, a dor, a fé e a solidão; cantar cantigas de ninar pra gente pequena, balançar num balanço de madeira, ler as ideias nos livros e escrever as suas. Veio pra correr montanhas, sentir cheiro de café vindo da cozinha, escutar as gargalhadas das tias costurando na sala, andar descalça pela casa, fazer fogueira em noite junina, conversar com alguém na penumbra. Veio conhecer o distante, falar línguas de outros povos, desentender o compasso do piano, apaixonar-se. Veio velejar em barcos escandinavos, brincar com a neve branquinha, pular em trampolins de alcançar as nuvens, passar noites em claro lendo e escutando melodias. Veio fazer-se e desfazer-se nas amizades, nos amores interinos e estrangeiros. Veio conhecer a estrada, os códigos e as leis, os sons das palavras não ditas, as doenças da alma. Veio sentir no paladar o gosto do sorvete de chocolate, da maçã do amor no parque, de pizza quentinha saindo do forno à lenha,  o gosto do amargo e da pequenez. Veio brincar de casinha debaixo de coqueiros, dançar balé no colégio, nadar no rio feito piaba, brincar de pique-esconde e amarelinha. Veio aprender a dirigir em alta velocidade, ser outras pessoas nas peças de teatro, bagunçar o quarto após cada arrumação. Veio ver filmes inventados, morar sob tetos desconhecidos, colecionar moedas num cofrinho com um sorriso. Veio ver as estrelas da varanda de casa, carregar caixas de leite até o armário, plantar árvores nos dias verdes, sonhar. Veio fazer não se sabe o quê, de tanta coisa! E dizem por aí que essa menina há muito habita a casa da Montanha Mágica, que adora tanto as visitas rotineiras quanto as inesperadas, que por lá gosta muito de contar estórias e que, a cada aniversário, faz um pedido secreto como sempre, mas à noite, deitada em seu travesseiro, fecha os olhos e revive seu mundo de faz-de-contas na eterna esperança de que aquilo se repita por muitos e muitos anos...

*Foto: aniversário de 3 anos em Araçuaí