domingo, 12 de setembro de 2010

Memória de Elefante

     "O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces sugia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
       - A quotazinha da Sociedade, senhor doutor.
     Puta que pariu os psiquiatras organizados em esquadra de polícia, pensava sempre ao procurar os cem escudos na complicação da carteira, puta que pariu o Grande Oriente da Psichiatria, dos etiquetadores pomposos do sofrimento, dos chonés da única sórdida forma de maluquice que consiste em vigiar e perseguir a liberdade da loucura alheia defendidos pelo Código Penal dos tratados, puta que pariu a Arte da Catalogação Da Angústia, puta que me pariu a mim, rematava ele ao embolsar o rectângulo impresso, que colaboro, pagando, com isso, em lugar de espalhar bombas nos baldes dos pensos e nas gavetas das secretárias dos médicos para fazer explodir, num cogumelo atómico triunfante, cento e vinte e cinco anos de idiotia pinamaniquesca." 
                              António Lobo Antunes - "Memória de Elefante" p. 9 e 10

Um comentário:

  1. Puta que pariu os que, apercebidos dos grilhões, os fazemos ainda mais fortes, em vez de os rompermos e errarmos livres!

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